E foi assim, pulando a janela da sala, no finalzinho da tarde, que ela deixou para trás os sonhos que não teve, o homem que não amava e a vida que não queria. Saiu sem levar uma muda de roupa ou um pedaço de pão. Nada que pudesse denunciar a sua falta ou lembra-la de tudo que acabava de deixar.
Na moça, nem um traço de beleza sequer: cabelos russos, unhas quebradas, boca rachada e olhos tão frios que contrastavam com o calor da região e era magra, horripilantemente magra. Aos treze, tinha a pele torrada de sol e mãos sofridas da lida, certeza única de cada dia. Aos quinze sonhou ser borboleta e querer pra vida um pouco além dos fétidos baldes de roupa e das botas sujas de merda.
Naquele mesmo dia saiu sem olhar para trás e assim seguiu por toda a sua jornada. Sem dinheiro, sem roupa, sem sapato, vestida apenas em xitas, suas asas coloridas. Saiu sem saber para onde iria.
Enquanto andava, lembrava o cheiro das ruas de sua pequena cidade. Depois de casada já não pisava por lá nem mesmo em dia de missa. Pelo caminho catava pedrinhas brilhantes e relembrava seus sonhos de criança: os vestidos floridos, as festas, o mar... tudo lhe fora arrancado por um casamento arranjado e por um homem infeliz que nem um filho era capaz de lhe dar.
Não sentia tristeza sem saudade, muitos menos arrependimento. Em pleno vôo, dançava, cantava e levantava poeira na estrada enquanto enchia seus bolsos pedras e a cabeça de sonhos que catava pelo chão.
E foi assim, com a as mãos cheias de pedras e a cabeça cheia de sonhos que o caminhão a encontrou, bem na curva, pouco antes da entrada da cidade, onde hoje esta fincada uma cruz, servindo de aviso às mocinhas com alma de borboleta. E estas, por crendice ou por teimosia, costumam depositar seus sonhos, feitos pedra, ao pé da cruz, na curva, hoje curva da borboleta.
Não sei se é verdade, mas contam que o fato aconteceu mais ou menos por essa época, no carnaval de 36.